O CRIADOR É NECESSARIAMENTE UM DESCRENTE
por Martin Heidegger
(em Nietzsche, Volume I, Ed. Forense Universitária, pg. 300-301)
Segundo Nietzsche, “toda crença é um tomar-por-verdadeiro” (A Vontade de Poder, n. 15; 1887). Porém, Nietzsche deseja ensinar-nos a “caminhar com os próprios pés” ao invés de sermos papagaios de crenças que nos foram ensinadas, impingidas, impostas. Ao invés de ser ovelhinha submissa ao pastor, crente que não questiona as “verdades sagradas”, Nietzsche nos convoca à libertação desta sina de subserviência e nos chama para que assumamos o papel de criadores. A criatividade, afinal de contas, não é o atributo de divindades que não existem, mas uma das possibilidades do humano mais dignas de serem afirmadas. Ouçamos o que diz Heidegger ao comentar o assunto:
“ ‘Eu não acredito em mais nada!” – esse é o modo correto de pensar de um homem criador.” (Nietzsche, XII, 250, n. 68) O que significa dizer: “Eu não acredito em mais nada?” Normalmente, essa asserção se mostra como o mais claro testemunho do “ceticismo absoluto” e do “niilismo”, da dúvida e do desespero em relação a todo conhecimento e ordem, e, por conseguinte, também como o sinal da fuga diante de toda decisão e de toda tomada de posição, como expressão daquela ausência de atitude para a qual nada mais vale a pena. Aqui, porém, não-acreditar significa não se ater sem mais a algo previamente dado e aí se aquietar, fechando os olhos para o próprio comodismo sob a aparência dessa suposta decisão.
Segundo a concepção nietzschiana, o que é, afinal, o verdadeiro? O verdadeiro é o que é fixado no fluir e na mudança constante do que vem-a-ser (do que devém), aquilo a que os homens precisam e mesmo querem se agarrar firmemente. O verdadeiro é o elemento firme a partir do qual os homens traçam os limites contra a atuação de todo questionamento e de toda inquietação e perturbação ulterior. Assim, o homem traz constância para o interior de sua própria vida… uma proteção contra toda inquietação e uma garantia de sua tranquilidade.
Em Nietzsche, a expressão “eu não acredito em mais nada” diz o contrário da dúvida e da paralisia ante a decisão e a ação. Ela significa: eu não quero colocar a “vida” em repouso em vista de uma possibilidade e de uma configuração. Eu quero muito mais permitir e garantir à vida o seu direito maximamente intrínseco ao devir, na medida em que pré-figuro e projeto para ela possibilidades novas e mais elevadas, e, assim, a conduzo criativamente para além de si mesma. Portanto, o criador é necessariamente um descrente no sentido citado da crença como um colocar em repouso. O criador é, ao mesmo tempo, um destruidor no que concerne ao que se enrijeceu e se cristalizou. No entanto, ele só desempenha tal papel porque comunica primeiramente e antes de tudo à vida uma nova possibilidade como a sua lei mais elevada. É o que nos afirma Nietzsche: ‘Todo criar é um comunicar. O cognoscente, o criador e o amante são um‘.”
Publicado em: 02/05/12
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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